O clássico de Steven Spielberg ajudou a refundar a ficção científica no cinema e subverte a lógica do gênero, narrando uma história que congrega intimismo e deslumbramento no encontro entre nós e seres de uma alteridade radical. Contatos Imediatos passa no Cinematógrafo de março, sábado, dia 30.

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O cinema surge revelando registros documentários da realidade, mas logo passa à invenção que marcou o primeiro cinema de arte, tomando-se como exemplo o revolucionário Viagem à Lua, de George Meliés, que já nos primeiros anos do século XX abordava a relação do homem com o desconhecido e, inclusive, com seres alienígenas!

“Contatos Imediatos do Terceiro Grau” (Close Encounters of the Third Kind), de 1977, além de ser considerado, por muita gente entre críticos e público,  como o melhor filme sobre a questão ufológica, se apresenta como a maior sinfonia cinematográfica de Steven Spielberg!

O filme conta uma história que parte de relatos reais de avistamentos de OVNIs: em uma pequena cidade americana vive Roy Neary (Richard Dreyfuss), um pai de família que, ao pressentir a chegada de alienígenas na Terra, tem o seu comportamento transformado. Ele fica obcecado pela ideia da presença alienígena e começa a investigar o fenômeno, tentando descobrir o local em que possivelmente extraterrestres farão contato. Como ele, diversas outras pessoas sentem a presença extraterrestre e rumam para o local do pouso da nave.

A aventura de Spielberg começa extremamente perturbadora. No deserto da Califórnia, durante uma tempestade de areia, aviões tidos como desaparecidos desde a Segunda Guerra Mundial reaparecem impecáveis no deserto, sem qualquer explicação. A única testemunha da apariação das aeronaves é um senhor mexicano, que exclama quase em transe: El Sol salió a la noche y mi cantó (O Sol saiu de noite e cantou pra mim). Arrepiante! Seguem-se aparições de OVNIs nos radares de controladores de vôo, um navio desaparecido surge no meio do deserto da Mongólia e, numa cena que marcou a história do cinema, milhares de indianos cantam em uníssono uma espécie de mantra que acompanhará o enredo até o inesquecível desfecho: Ré, Mi, Dó, Dó, Sol. De onde veio esse som? pergunta o pesquisador das Nações Unidas Claude Lacombe (François Truffaut, diretor expoente da Nouvelle Vague). 

TECNOLOGIA E MITOLOGIA

O século XX – uma era de extremos – foi marcado por um prodigioso salto de desenvolvimento tecnológico que, como causa e sintoma, produziu novas configurações sociais e culturais resultantes de uma crescente racionalidade técnica, mas também guerras catastróficas, destruição e as maiores ameaças em escalas globais. Na ficção científica, da literatura  ao cinema, extrapolou-se os limites lunares e marcianos, e toda uma mitologia dedicada aos denominados extraterrestres apareceu abrangendo a infinidade do cosmos, aliando a escalada tecnológica aos anseios ancestrais da humanidade em busca do divino, do desconhecido e da redenção, mas também os medos mais antigos do desconhecido.

Em Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Steven Spielberg explora essa mitologia e subverte o gênero da ficção científica voltada para a ameaça extraterrestre, construindo uma história que congrega intimismo e deslumbramento diante da possibilidade do encontro com visitantes de um mundo desconhecido. Na década de 1950, a ameaça nuclear de destruição mundial passou a projetar uma sombra de medo em todo o mundo, e o cinema de ficção científica, quase sempre, espelha o espírito de seu tempo: desde “O Dia em que a Terra Parou”, de 1951, até as adaptações do romance  “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells, seja o antológico rádio-drama do então futuro cineasta Orson Welles, em 1938; ou as tentativas frustradas de Cecil B. DeMill em 1925 e de Alfred Hitchcock na década de 1930; até o famoso filme B estadunidense de 1953 que teve grande sucesso de público (o próprio Spielberg, aliás, adaptou o livro em 2005, sem o mesmo sucesso do filme de 1953), os alienígenas representavam, de uma forma ou de outra, uma ameaça apocalíptica que emulava o zeitgeist de terror da tensão bélica entre União Soviética e EUA.

Em 1977, ano de lançamento de Contatos Imediatos, as duas potências, atendendo a um clamor global, buscavam atenuar a ameaça nuclear de seus arsenais. O mundo, porém, enfrentava incertezas estruturais com as crises do petróleo, e graves ameaças contextuais que emergiam, como o terrorismo e a depressão pós-Vietnã nos EUA. Spielberg, entretanto, apresenta um filme que dá um passo na direção de uma reconciliação cósmica com os misteriosos visitantes alienígenas, donos de uma tecnologia muito superior em relação à nossa e capazes de produzir nos seres humanos fenômenos inexplicáveis de natureza psíquica.

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François Truffaut em “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”.

O roteiro* de Contatos Imediatos, importa dizer, foi inspirado em experiências de pessoas reais, que relataram avistamentos de OVNIs e contatos com extraterrestres em vários graus. Até hoje, aquela mitologia em torno dos seres extraterrestres se renova, ganhando novas roupagens que acompanham a progressão tecnológica do mundo e seus impactos culturais, ultrapassando o campo objetivo da ciência e penetrando nas esferas cosmológicas da religião e da espiritualidade.

Em Contatos Imediatos, Spielberg dialoga com essa mitologia moderna e contemporânea, valorizando aspectos intimistas e psicológicos nos personagens principais, favorecendo a expectativa de um encontro pacífico com os visitantes extraterrestres, que seriam, a princípio, benevolentemente interessados na espécie humana. A trama, entretanto, sustenta o suspense até quase o final do filme, quando enfim o contato de terceiro grau acontece numa das cenas mais emocionantes da história da cinematografia blockbuster: a da conversação musical, através das memoráveis cinco notas criadas por John Williams, entre terráqueos e os visitantes extraterrestres.

A trilha sonora de Contatos, aliás, merece ser destacada: ela assume uma função dramática fundamental, participante da narrativa do filme, que rendeu a Williams diversos prêmios, dentre os quais o Grammy de Melhor Trilha Sonora.

Sem dúvida, Contatos Imediatos do Terceiro Grau é uma prova de que o cinema já foi (ainda é?) a maior diversão! sem prescindir de uma estreita ligação com o pensamento de aspectos de seu tempo a partir de metáforas (ou não…) sobre o nosso imaginário cosmológico e político. O filme ocupa um lugar importante na história do cinema, tendo ajudado, junto com “Star Wars”, também de 1977, “Superman” (1978) e “Alien” (1979), a refundar a ficção científica na era do blockbuster, além de ser um espetáculo visual (ainda mais na tela do cinema), sonoro e de forte impacto na imaginação contemporânea.

Tal como expressa certo diálogo entre os personagens Claude Lacombe (François Truffaut) e Roy Neary (Richard Dreyfuss): “mas afinal o que você quer”?, pergunta Trouffaut, ao que Dreyfuss responde: “eu só quero saber o que realmente está acontecendo”.

CURIOSIDADES

Algumas curiosidades, dentre as inúmeras que fazem a mística de Contatos Imediatos:

O cineasta François Truffaut trabalhou como ator em “Contatos Imediatos de Terceiro Grau”, no papel de Claude Lacombe, personagem baseado no ufólogo francês Jacques Vallée, do qual Spielberg era fã declarado;

Stanley Kubrick ficou tão impressionado com o desempenho de Cary Guffey (a criança) que anos mais tarde o chamou para o papel de Danny Torrence no filme “O Iluminado”.

Contatos Imediatos do Terceiro Grau foi lançado em novembro de 1977, mas a versão que chegou às telas não agradou Spielberg. Mais tarde, o cineasta convenceu o estúdio de que precisava terminá-lo de maneira decente e voltou ao set para rodar cenas adicionais. Uma nova versão foi lançada em 1980, com quinze minutos originais removidos e doze minutos inéditos adicionados (incluindo o interior da nave-mãe no final). A partir daí, o cineasta voltou pelo menos mais quatro vezes à fita, cortando pedaços e incluindo outros, até chegar à versão definitiva – lançada em DVD só em 2001: Close Encounters of the Third Kind (Collectors edition). Foram quase 25 anos para finalmente aceitar que seu filme estava pronto, prova da obsessão do diretor pelos detalhes de sua obra.

É possível ver o personagem R2-D2, da série “Star Wars”, no topo de uma larga espaçonave que sobrevoa a Montanha do Diabo. Ele pode ser visto também na cena em que Jillian vê pela primeira vez a nave-mãe de perto;

As notas que caracterizam o filme (Ré Mi Dó Dó Sol) entraram para a História do Cinema como ícones de uma obra prima, sendo também usadas para identificar os intervalos comerciais da extinta Rede Manchete de Televisão, sendo que este também foi o primeiro filme exibido pela mesma Manchete, somente três horas após ela ir ao ar pela primeira vez;

Com a ajuda de um consultor técnico, o especialista em OVNIs J. Allen Hayek, Spielberg conseguiu criar uma fascinante atmosfera de magia e mistério totalmente verossímil desde seu início.

Contatos Imediatos passa no Cinematógrafo de março, em 30/3 (sábado):

CAPA CONTATOS

O CINEMATÓGRAFO NA SALADEARTE

O Cinematógrafo acontece mensalmente na Saladearte — Cinema do Museu (Corredor da Vitória), sempre no último sábado do mês, exibindo filmes de formas e temas diversificados. A curadoria é dos cineastas Fabricio Ramos e Camele Queiroz e as sessões são sempre seguidas de uma boa conversa sobre o filme, mas também sobre as relações do cinema com a arte e a vida. Os ingressos são vendidos normalmente no local, com preço especial no valor de meia entrada para todos.

Localização:

*O roteiro foi inicialmente escrito por Paul Schrader, mas Spielberg o modificou tanto que o próprio Schrader solicitou que seu nome fosse retirado dos créditos do filme e o diretor passou a assinar a autoria do roteiro.

 

 

Um comentário em “Cinematógrafo de março (sáb, 30): “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, de Steven Spielberg

  1. Republicou isso em BAHIADOCe comentado:

    O clássico de Steven Spielberg ajudou a refundar a ficção científica no cinema e subverte a lógica do gênero, narrando uma história que congrega intimismo e deslumbramento no encontro entre nós e seres de uma alteridade radical. Contatos Imediatos passa no Cinematógrafo na Saladearte de março, sábado, dia 30.

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