Sessão inaugural do Cinematógrafo em Foco apresenta a belíssima obra de Eugène Green, sexta, dia 23, às 19h30, na Saladearte Cinema da Ufba.
O Cinema de Eugène Green e “A Ponte das Artes”
“A Ponte das Artes” arrebata e o faz, paradoxalmente, com sutileza e equilíbrio! E nos arrebata não somente pelo que nos oferece enquanto “cinema”, mas sobretudo pela “energia” dramática e estética que Eugène Green consegue nos transmitir, e não só transmitir, mas atingir como um raio luminoso que atravessa o nosso espírito e ilumina o coração.
Estadunidense que escolheu se tornar europeu, mais precisamente, buscar nas línguas latinas algo que, para ele, inexistia nas línguas de matriz anglo-saxã, Green refugiou-se, por assim dizer, na França. Tendo se dedicado por décadas ao Teatro e ao estudo profundo do período Barroco, ele realizou seu primeiro filme já quase aos 54 anos de idade, em 2001 e, desde então, vem sendo laureado em importantes festivais e atraído um séquito de fãs e admiradores extasiados.
Desde o seu primeiro trabalho, “Todas as Noites” (2001), dirigiu sete longas-metragens e mais alguns curtas, compondo uma cinematografia de variadas abordagens temáticas, mas marcada por um estilo próprio que manifesta uma ideia conceitual de cinema, conjugando simplicidade e um rigoroso formalismo com fins de produzir uma sintaxe cinematográfica extemporânea.
Destoando, portanto, do realismo e do naturalismo despojado predominantes no cinema de arte ou cultural que vem sendo feito neste século, Eugène Green desloca a busca da especificidade da imagem cinematográfica para valorizar, na imagem, a presença da palavra e o poder do signo: para o diretor, toda imagem, essencialmente, se constitui como um signo que busca uma palavra.
O Cinema, para Green, é “a arte metafísica por excelência, porque ele leva o espectador a uma apreensão do espírito a partir de uma captação da matéria”. Essa visão metafísica do cinema traz para o centro da concepção de Arte a dimensão conceitual que pode ser expressa numa palavra em desuso nos tempos atuais: a palavra “espiritual”, que evoca a presença do sagrado e do mistério.
A PONTE DAS ARTES
Em “A Ponte das Artes”, de 2004, Eugène Green constroi uma representação que busca expressar o sentido profundo da arte: a conexão espiritual entre os seres que vivifica o mistério da natureza através da criação, da sensibilidade, da emoção em relação com o pensamento.
Narrativamente, a trama do filme é simples: uma história de amor impossível entre dois jovens que nunca conseguem se encontrar. Sarah (Natacha Régnier) é cantora lírica de música barroca, sob a direção de um homem cruel, o Inominável. Já Pascal (Adrien Michaux), estudante desiludido com seus estudos e seu mestrado, busca um sentido para a vida.
A narrativa acontece integrada ao estilo e à estética do diretor. Para expressar o vislumbre de uma dimensão sagrada presente no mundo e que somente o cinema poderia revelar (como pensa Eugène Green), alguns dispositivos dão forma ao regime narrativo e estético do filme: o tom teatral da performance dos atores, os diálogos extremamente precisos e diretos nas conversas e, nestas, o olhar frontal de cada interlocutor dirigido à câmera, enquanto falam um com o outro.
Tributário, em algum grau, do cinematógrafo de Bresson, alguns recursos de estilo remetem também a Ozu, em especial, a atenção dada a planos parciais de objetos ou cantos de um lugar.
Dentre estes recursos, um que nos envolve intensamente é o uso da luz. Valorizando contrastes, Green sempre utiliza luz de velas em seus filmes: a vela e a chama são signos que evocam certa simbologia narrativa, mas seus efeitos de sombra e luz cumprem uma função estética precisa e incisiva: se os personagens não são psicologizados (não são seus sofrimentos que importam, mas o drama que eles encenam e expressam através de palavras, símbolos e metáforas), o jogo de luz e sombra traduz a complexidade e contradições do mundo e do humano.
A modalidade artística que aparece na história de “A Ponte das Artes” é, em especial, a Música. O “Lamento della Ninfa”, de Monteverdi, dá o tom do filme. Mas, em seu conjunto — estilo, narrativa e estética –, o filme é em si a obra de Arte que nos quer comunicar um mundo que o mundo mesmo nos nega ou se esforça para negar: o mundo espiritual que habita o mundo material.
Esta é, afinal, a descrição mais precisa e profunda do estilo Barroco para Eugène Green: um período histórico, antes de mais nada, que se expressava nas artes e na arquitetura. O que torna especial esse período é o seu ideário fundamental de reunir o divino e o humano num espaço/tempo comum, ou — como diz Sarah ao seu namorado: “as pessoas do período barroco diziam sempre duas coisas contraditórias, ambas verdadeiras.”
Essa é a pequena grandeza do cinema de Eugène Green: traduzir na imagem a palavra, e da palavra extrair o sentimento do sagrado que só a imagem — a imagem do cinema — pode proporcionar. Às vezes, no filme, uma personagem se exime de dizer, cala-se num momento em que mais esperamos uma resposta ou uma fala, e ela nos olha diretamente e mais nada. E tudo está aí, num olhar lancinante, calmo, profundo, cúmplice de nós em nosso próprio mundo interior contraditório, secreto, ávido de ser.
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Por Fabricio Ramos e Camele Queiroz, curadores das ações Cinematógrafo na Saladearte!
CINEMATÓGRAFO EM FOCO
O Cinematógrafo inicia mais uma ação mensal — o Cinematógrafo em Foco — que realizará sessões com enfoques temáticos, propostos pelos curadores ou apresentados por convidados especiais. As sessões serão sempre numa noite de sexta. A sessão “Arte, Afinal” apresenta “A ponte das Artes”, nesta sexta, dia 23, às 19h30, em sessão seguida de conversa introduzida pelos curadores Camele Queiroz e Fabricio Ramos. Ingressos já à venda em qualquer sala do Circuito Saladearte.
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